Histórias de encontros e despedidas marcam 1º ano do Hospice do Erasto Gaertner
Diagnosticada com um câncer agressivo, a dona de casa Lúcia Gonçalves Franco viu-se amparada por uma rede de afeto e cuidados. Sem abrir mão de medicações, foi envolvida em uma rotina preocupada em atender a seus gostos e predileções: os programas a que preferia assistir na TV, as músicas que tinha prazer em ouvir, os passeios que amava fazer com as três filhas, os hobbies que apreciava praticar. No caso do motorista Alfredo Divino do Prado, os dias que poderiam ser de lamento e tristeza foram marcados pelo estreitamento dos vínculos familiares. No seu último fim de semana, brincou com o neto de ciranda, mesmo sob uma cadeira de rodas, em casa, onde recebia os zelos possíveis contra a grave oclusão intestinal.
Dona Lúcia e seu Alfredo partiram em 2020. Ela, aos 58 anos; ele, aos 57. Foram dois dos pacientes que plantaram a sua história e vivência no Hospice do Hospital Erasto Gaertner, em Curitiba, a primeira unidade de tratamentos paliativos do Sul do Brasil com atendimento SUS, que completou um ano de inauguração no dia 24 de janeiro. Seu principal foco é promover, em qualquer momento da enfermidade, a qualidade de vida do paciente e de seus familiares através da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce de situações possíveis de serem tratadas, da avaliação minuciosa e do tratamento da dor e de outros sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais.
“Às vezes, não conseguimos curar a doença, mas cuidar conseguimos sempre. Como diz a literatura, nem sempre é possível adicionar dias à vida, mas sempre é possível adicionar vida aos dias. O hospice é isto: um cuidado ainda mais potencializado, pois o nosso foco vai ser no atendimento personalizado, na dignidade do ser humano diante de sua finitude”, define o psicólogo Ronny Kurashiki, integrante da equipe multiprofissional da estrutura, formada também por médicos, enfermeiros especializados, assistentes sociais, nutricionistas, fonoaudiólogos e fisioterapeutas.
Kurashiki menciona os vários desafios enfrentados e superados ao longo desses 12 meses, entre eles a atenção a um trabalho que por essência pede proximidade e contato justamente num momento em que há um plano contingencial contra a pandemia da Covid-19. Outro ponto de atenção é estipular o momento mais apropriado para falar com quem padece sobre um prognóstico que nunca é o que ele e a família gostariam de ouvir. Como sintetiza, é um convite à verdade.
“A equipe não abandonou a essência dos cuidados paliativos com a pandemia. Adotou protocolos necessários para que familiares e pacientes pudessem integrar-se à filosofia e os procedimentos do hospice sem riscos. Identificar o momento mais indicado para oferecer esse aparato é uma decisão técnica cientificamente embasada, que também considera os valores, a cultura, a história desse paciente e de sua família. É uma decisão compartilhada. O paciente e a família têm uma autonomia solidária. Nem só nós vamos decidir nem só eles. O paciente tem o direito de saber de todas as informações, mas não tem o dever.”
Independentemente do contexto, complementa, sempre haverá algo a se fazer, como amparos físicos, manejos, uso de remédios, curativos, consultas... “Prestamos um tratamento que não é só cientificamente atestado, mas também alinhado à espiritualidade, que é o sentido que damos à nossa existência. É muito comum que as pessoas resgatem as suas questões da vida como um todo para poderem reafirmar as respostas que tinham antes da doença ou até construírem novas respostas que agora deem sentido para o que têm vivido. Isso é espiritualidade, que pode ou não estar ligada à religiosidade. Por que tiramos a dor do paciente? Para que ele possa viver a vida que ele teve com a sua biografia”, detalha o psicólogo.
Mais sobre o hospice
Com investimento superando a casa de R$ 4 milhões, a partir de um termo de cooperação entre a montadora Volkswagen do Brasil e a Liga Paranaense de Combate ao Câncer (LPCC), por meio do Governo do Estado do Paraná, o espaço possibilita duplicar a quantidade média anual dos atendimentos e principais procedimentos médicos do serviço de cuidados paliativos, existente no HEG desde 1994. A estrutura conta com pronto atendimento, ambulatório e 26 leitos humanizados, com proposta de acomodações para acompanhante, além de espaços de convivência.
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Aconchego e atendimento multiprofissional em espaço com cara de casa
Diretora técnica do Hospice do Erasto Gaetner, a médica especialista em cancerologia Clarice Nana Yamanouchi descreve o espaço com um local humanizado, com a sensação de proximidade com natureza. “É um conceito que une casa e hospital, mas sem aquelas luzes fortes e os corredores brancos. Traz paz e serenidade, o que ajuda no controle de sintomas. Isso permite que familiares também se sintam acolhidos e seguros e contribui no cuidadoe”. As ferramentas mais usadas, prossegue, são o toque humano e a individualidade de cada sujeito. “E avançamos em utilizar métodos para controle de dor oncológica”, reitera.
Atenuando esse sofrimento físico, é possível partir para os outros aspectos, como lembra Luiz Sérgio Batista, médico paliativista do Hospice. “Assim podemos colocar o norte na discussão quanto ao morrer por aquela doença. Trabalho com cuidados paliativos desde 2016, ganhei uma bagagem absurdamente grande. Consigo enxergar minha mudança como profissional do que eu era no começo, no primeiro dia de Serviço de Cuidados Paliativos do Erasto. Aprendo com meus colegas e pacientes.”
A história do seu Alfredo destacada no início da reportagem é relato de Luiz Sérgio. É marcante para ele, pois a cada momento era preciso apontar se o mais apropriado era voltar a interná-lo no hospice ou deixar o paciente ir para casa a fim de viver os últimos momentos com a família, que também é treinada por enfermeiros para aplicar as medicações recomendadas no ambiente doméstico. “O paliativista acaba vivendo a finitude de seus pacientes muitas vezes. A empatia necessária para esse trabalho leva-os para dentro do sofrimento. Mas o cabo de segurança nosso, e cada um tem o seu, resgata-nos para a vida normal para não entrarmos num processo de luto de um paciente além do habitual.”
A sua própria experiência diante do risco de morte também passou a contar muito nesse trabalho empático para entender o sofrimento psicológico. Em 2020, Luiz Sérgio teve Covid-19, que evolui para um estágio grave a ponto de ficar sete dias intubado em UTI. “Ver-me incluído nesse risco de morte me fez vestir ainda mais os sapatos de meus pacientes, de sentir o medo e a angústia deles. Por mais que tivesse visto isso mil vezes, ter sentido isso na própria pele foi muito forte para mim, desesperador. Conversando com a médica que me atendeu na UTI, vi que o temor era algo natural. Foi uma conversa que vou levar para o resto da vida.”
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“No pior momento das nossas vidas, foi a melhor coisa que aconteceu”
Regina Franco Feliciano vive hoje a lembrança da perda de uma forma mais amena. Nos dias que antecederam a morte da mãe, aproveitou cada momento que pôde com ela, sob a orientação da equipe multiprofissional do hospice. Confira o depoimento
“Foi a melhor coisa que aconteceu durante a pior das situações da nossa vida. Quando recebemos a indicação da equipe do Erasto para levarmos minha mãe para o hospice, houve um choque inicial, pois caiu a ficha de que não havia nada a se fazer mais para alcançar a cura dela. Tivemos acolhimento. Minha mãe estava muito consciente de tudo. Se sentiu muito confortável, parecia estar em casa, amava o atendimento. Isso foi extremamente marcante tanto pra mim quanto para as minhas duas irmãs.
Os médicos nos incentivaram a fazer coisas de que ela gostava. Tivemos motivação de estar ali. Colocávamos as músicas que ela gostava de ouvir, as coisas que gostava de assistir. Levamos minha mãe duas vezes pra passear, mesmo ela estando debilitada. A nossa família já era unida e naquele momento a nossa ligação ficou ainda mais forte. Queria aproveitar todos os momentos que tínhamos com ela. Ela se foi muito cedo. Faz muita falta. Partiu muita nova, mas aproveitamos tudo que pudemos.”
Depoimento de Regina Franco Feliciano, 40, filha de Lúcia Gonçalves Franco, paciente que morreu aos 58 anos e foi atendida no Hospice do Erasto Gaetner